Aurea Andressa Lacerda Lima

Este breve artigo não se propõe a esgotar o assunto, que requer um amplo estudo sobre o funcionamento das neurotecnologias e seus impactos sociais, mas pretendeu trazer um quadro geral, apresentando os chamados neurodireitos, a fim de trazer conhecimento acerca da matéria e da produção legislativa em alguns países e no Brasil.

No último dia 17 (quarta-feira), por meio da lei de privacidade do Colorado, os EUA passaram a classificar os dados neurais como dados sensíveis1. Esta mudança legislativa acontece devido aos avanços tecnológicos no campo da neurociência e ao aprimoramento da IA, que permite a coleta de informações sobre os processos mentais do ser humano, as chamadas neurotecnologias.

Neste ambiente cercado de inovações e avanços, no qual a tecnologia se desenvolve de forma exponencial, saindo da esfera de ficção científica e passando a fazer parte da realidade mundial, seja a partir de pesquisas cada vez mais avançadas ou de vultosos investimentos em empresas especializadas no desenvolvimento destas novas tecnologias, faz-se necessário compreender os conceitos, os reflexos na sociedade e os limites éticos e legais inerentes a esta evolução.

De forma resumida, cumpre esclarecer que as neurotecnologias são definidas como o conjunto de tecnologias empregadas para a obtenção de informações cerebrais relacionadas ao entendimento, desenvolvimento e aprimoramento das funcionalidades cerebrais, possibilitando significativos avanços em diversas áreas e segmentos com a aplicação de tais tecnologias.

Com o avanço das neurotecnologias e considerando a necessidade de melhor compreender os limites éticos e legais, surge um novo campo de debate visando definir as proteções normativas dos direitos humanos e dos direitos de privacidade, decorrentes dos riscos e exposições que os referenciados avanços tecnológicos podem desencadear. Este novo campo é denominado “Neurodireitos”, cujo conceito foi desenvolvido pela NeuroRights Initiative como sendo uma nova estrutura jurídica internacional de direitos humanos destinados especificamente a proteger o cérebro e sua atividade à medida que ocorram avanços em neurotecnologia.

Para entender o desenvolvimento e potencial das neurotecnologias, retornemos a 2013, quando foi criada a BRAIN Initiative – Brain Researchs through Advancing Innovative Neurotecnologies Initiative, nos Estados Unidos, para fomentar o desenvolvimento de tecnologias capazes de mapear a atividade neural humana e auxiliar na cura de condições neurológicas Além desta iniciativa, outras pesquisas e iniciativas se desenrolavam pelo mundo, tornando uma realidade a decodificação de processos mentais (Melo, p. 76, 2023).2

Em 2021, por exemplo, tivemos o anúncio, pela empresa Neuralink, fundada por Elon Musk e outros empreendedores, de um chip para implante cerebral, com o objetivo de servir de interface cérebro-computador (Brain computer interface – BCI)3 e mais recentemente, na conferência NeurIPS, que reúne grande pesquisadores em inteligência artificial e aprendizado de máquina, pesquisadores da GrapheneX-UTS Human-centric Artificial Intelligence Centre, localizada na Austrália, expuseram um sistema portátil, não invasivo, que decodifica pensamentos para transformá-los em texto, por meio de um modelo de IA, chamada DeWave, que traduz os sinais captados do cérebro por meio de um EEG – eletroencefalograma, vestido como uma touca4.

Desse modo, e, conforme inicialmente mencionado, o exponencial desenvolvimento tecnológico passou a gerar desafios éticos e jurídicos, à medida que possibilitam a ruptura da última fronteira de privacidade humana: a produção mental. Por conta disso, no ano de 2017, no artigo intitulado Four ethical priorites for neurotechnologies and AI de autoria de Rafael Yuste et al.,5 foram apresentadas quatro prioridades éticas no desenvolvimento das neurotecnologias, florescendo, assim, os já citados neurodireitos, sendo elas: a privacidade mental e o consentimento, a agência e identidade pessoal, o direito ao aumento cognitivo e o direito à proteção contra vieses (De Andrade, 2023, p. 236).6

Ainda no ano de 2017, dessa vez os autores Ienca e Adorno, no artigo Towards new human rights in the age of neuroscience and neurotechnology7, analisando os impactos decorrentes da aplicação das neurotecnologias, apresentaram um conjunto de neurodireitos, visando ampliar os direitos humanos: o direito à liberdade cognitiva, o direito à privacidade mental, o direito à integridade mental e o direito à continuidade psicológica (De Andrade, 2023, p. 237).8

Em seguida, mais especificamente em 2019, um grupo de estudos denominado Morningside, liderado pelo já citado Rafael Yuste, do Centro de Tecnologia da Universidade de Columbia, em Nova York, ampliou para cinco o conjunto de neurodireitos e fundou a Neurorights Foundation, passando a advogar globalmente pela regulamentação destes, estabelecendo o debate sobre cinco neurodireitos, que compreendem: 1. Direito à privacidade mental, que se traduz na ideia de que os dados sobre a atividade cerebral de uma pessoa não podem ser usados sem o seu consentimento; 2. Direito à identidade mental, apontando que sob nenhuma circunstância a neurotecnologia pode alterar o sentido do Eu; 3. Livre-arbítrio, como salvaguarda das tomadas de decisões livres, impedindo manipulações neurológicas; 4. Proteção contra os vieses, a fim de que os indivíduos não possam ser discriminados a partir de dados obtidos de neurotecnologia; e 5. Direito ao acesso equitativo, de modo a evitar assimetrias sociais, garantido a disponibilização a todos das melhorias às capacidades cognitivas oferecidas pelas neurotecnologias.9

A concretização dos chamados neurodireitos, portanto, tornou-se imprescindível para orientar o desenvolvimento dessas técnicas, evitando impactos bio-sociopolíticos e econômicos negativos da sua aplicação, além de balizar a produção e atualização jurídico-normativa, a fim de proteger o indivíduo.

A primeira iniciativa para incorporar neurodireitos em uma constituição nacional foi do Chile, com a aprovação da lei 21.383, que dispõe acerca da proteção dos direitos neurais e sobre a integridade mental, e resultou na redação do art. 19, 1º da Carta Fundamental chilena que prevê10:

(…) O desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviços das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e mental. A Lei regulará os requisitos, condições e restrições para seu uso em pessoas e deve proteger especialmente a atividade cerebral bem como as suas informações.

Vale mencionar que a OEA também abordou o tema, a partir da publicação da Declaração Interamericana de Princípios sobre Neurociências, Neurotecnologias e Direitos Humanos.11

No Brasil, os neurodireitos não estão plenamente regulamentados, mas a temática vem sendo introduzida no meio jurídico. Isso porque está em tramitação, na Câmara dos Deputados o PL 522/22, que se encontra em análise da Comissão de Seguridade Social e Família desde 23/3/22 aguardando o parecer da relatora, deputada Adriana Ventura (NOVO-SP)12. Referenciado Projeto visa modificar a lei 13.709/18 (LGPD) para conceituar e regulamentar a proteção do uso e tratamento de dados neurais da seguinte forma:

“XX – dado neural: qualquer informação obtida, direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador, ou qualquer outra tecnologia, invasivas ou não-invasivas;

XXI – interface cérebro-computador: qualquer sistema eletrônico, óptico ou magnético que colete informação do sistema nervoso central e a transmita a um sistema informático ou que substitua, restaure, complemente ou melhore a atividade do sistema nervoso central em suas interações com o seu ambiente interno ou externo;

XXII – neurotecnologia: conjunto de dispositivos, métodos ou instrumentos não farmacológicos que permitem uma conexão direta ou indireta com o sistema nervoso.

(…)

Art. 13-A O tratamento de dados neurais somente ocorrerá quando:

o titular ou o responsável legal consentir, de forma específica e destacada, para finalidades específicas, mesmo em circunstâncias clínicas ou nos casos em que a interface cérebro-computador tenha a capacidade de tratar dados com o titular inconsciente;
sem fornecimento de consentimento do titular, nas hipóteses em que for indispensável para:
realização de estudos por órgão de pesquisa, garantida a anonimização dos dados pessoais sensíveis;
proteção da vida ou da incolumidade física do titular ou de terceiros;
tutela da saúde, exclusivamente, em procedimento realizado por profissionais de saúde, serviços de saúde ou autoridade sanitária;
Parágrafo único. O pedido de consentimento para o tratamento de dados neurais deve indicar, de forma clara e destacada, os possíveis efeitos físicos, cognitivos e emocionais de sua aplicação, as contraindicações bem como as normas sobre privacidade e as medidas de segurança da informação adotadas. Art. 13-B É vedado o uso de qualquer interface cérebro-computador ou método que possa causar danos à identidade individual do titular dos dados, prejudicar sua autonomia ou sua integridade psicológica.

Art. 13-C É vedada a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados neurais com objetivo de obter vantagem econômica.

Art. 13-D Não se aplicam aos dados neurais as exceções previstas no inciso I e inciso II, alínea ‘a’, do art. 4º.

Art. 13-E O Estado tomará medidas para assegurar o acesso equitativo aos avanços da neurotecnologia.”

Ainda no cenário nacional, em 2023, o deputado Federal Randolfe Rodriguez propôs a emenda à constituição 29 para abarcar, no art. 5º da Constituição Federal, a proteção à atividade cerebral e os dados neurais.13