Dois litros por dia não é regra
O hábito de beber água recorrentemente só se faz necessário, do ponto de vista biológico, quando há a indicação de que o corpo está começando a ficar desidratado, ou seja, quando a sede aparece
A água é uma grande parte da composição do corpo humano – Foto: Freepik
O corpo humano é composto de cerca de 60% a 70% de água e, por isso, ela é imprescindível para a manutenção de uma boa saúde. Entretanto, a quantidade que deve ser ingerida ainda deixa algumas dúvidas.
“Por ser tão crítica para a vida, há processos fisiológicos que controlam de forma estrita o balanço de sal e água no organismo. De forma simplificada, para manter a quantidade de água do nosso corpo é preciso repor as perdas”, comenta o professor Eduardo Barbosa Coelho, da área de Nefrologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP.
Importância
Como dito, a água é uma grande parte da composição do corpo humano. Mas, de modo prático, qual é a sua real importância? Para que o organismo se mantenha funcionando, as reações bioquímicas necessitam da água e são fundamentais: desde a troca de CO2 por O2 na respiração até a digestão. “Ela transporta nutrientes e oxigênio pela corrente sanguínea, mantém a concentração correta para a manutenção do equilíbrio eletrolítico e ácido-base, regula a temperatura corporal, mantém a estrutura celular, incluindo a membrana celular e a estrutura das proteínas e dos ácidos nucleicos e é vital para a excreção de substâncias tóxicas pela urina e fezes. A água é tão crítica para a vida que se você perder mais que 4% da água corporal total os sintomas de desidratação irão surgir e, se houver uma perda maior que 15%, ela pode ser fatal”, explica Coelho.
Quantidade
Coelho diz que repor a água perdida é preciso, mas também explica como essa perda ocorre: “Nossas células, no processo de respiração celular, convertem os nutrientes e o oxigênio que chegam pela corrente sanguínea em gás carbônico (CO2) e água. Assim, um adulto de cerca de 70 kg ‘fabrica’, aproximadamente, 700 mL de água por dia. As perdas de água ocorrem de três maneiras: uma parte corresponde à produção de secreções (saliva, suco gástrico e suor, por exemplo), a outra parte é eliminada na respiração e uma última parte está presente na urina e nas fezes”.
Um estudo publicado pela Science pontua que o volume para consumo diário é determinado por diversos fatores como sexo, idade, aspectos físicos, umidade do ar, temperatura e até mesmo o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Assim, não existe uma quantidade ideal de água ー como os famosos dois litros ー, já que a influência de múltiplos pontos modifica a necessidade de cada indivíduo.
“Não há um valor ‘normal’ ou recomendável para se ingerir ao dia. Geralmente, para um adulto numa dieta normoproteica padrão, cerca de 1 a 1,5 litro de água será suficiente para manter o balanço hídrico. Porém, esse valor dependerá do metabolismo individual, da idade, da distribuição de gordura corporal, das condições ambientais, da atividade física e de outros fatores que afetam a perda de água. Há uma ideia generalizada de que consumir água faz bem à saúde. Como descrito acima, há mecanismos fisiológicos para a manutenção de um equilíbrio hídrico e caso haja falta de água a sede aparecerá”, pontua Coelho.
Porém, mesmo não havendo um volume ideal a ser ingerido, o professor Roberto Zatz, da disciplina de Nefrologia do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da USP, coloca que certos grupos devem ficar mais atentos à quantidade de água: “Alguns grupos costumam ser encorajados a manter um certo nível de consumo, em geral algo próximo aos famosos dois litros/dia, para aumentar o fluxo urinário. Os exemplos são: indivíduos com infecção urinária ou com tendência a desenvolvê-la: embora não haja evidências conclusivas, firmou-se o conceito, muito razoável, de que um fluxo urinário alto dificulta a fixação de bactérias à via urinária; outro grupo que pode se beneficiar de um consumo mais alto de fluidos é constituído de pessoas com propensão a formar cálculos urinários ー as ‘pedras nos rins’. Na ausência de tais condições, não há fundamento para o conceito de que o hábito de consumir altas quantidades de água sirva para ‘limpar o organismo’ ou traga qualquer outro benefício”.
Efeitos
É muito difícil o excesso de consumo de água ser perigoso, porém, existem algumas circunstâncias específicas que podem levar a isso: “Os rins têm uma grande capacidade de eliminar excessos de água, o que permite uma ingestão máxima superior a 15 litros por dia. Isso significa que, em geral, beber mais líquidos do que o necessário não causa grandes problemas (afinal, dificilmente alguém deseja ou consegue beber 15 litros de água ー equivalentes a 60 copos ou um copo a cada 15 minutos em um só dia). No entanto, existem algumas situações de intoxicação hídrica, uma espécie de ‘overdose de água’. Essa condição pode resultar de um consumo superior a 15 litros por dia ou de uma ingestão tão rápida, por exemplo, cinco litros em meia hora, que não há tempo para que os rins eliminem o excesso. Um acúmulo excessivo de água no organismo causa diluição de solutos e, em consequência, edema (inchaço) cerebral e um quadro neurológico grave que pode ter desfecho fatal”.
Zatz ainda adiciona que também existem grupos de risco, como alguns cânceres, que produzem anormalmente um hormônio que dificulta a excreção de água pelos rins, sendo a intoxicação hídrica uma das prováveis primeiras manifestações da doença. A doença renal crônica, conhecida também como insuficiência renal crônica, é uma condição em que ocorre a perda lenta dos rins, seja por hipertensão, diabete ou processos inflamatórios na maioria dos casos. Em fases avançadas, a capacidade de eliminar excessos de água é comprometida. Porém, como dito, esse excesso diz respeito somente a quantidades anormais de água ou quando existe alguma enfermidade que envolva isso; a água continua sendo essencial para a manutenção da saúde.
Fonte: JORNAL DA USP